Capítulo 1

Me formei. E agora?

“A partir deste momento, a partir do instante em que sairmos por aquela porta, nossa vida será diferente. Não seremos mais estudantes de comunicação social desta, que é uma das maiores e mais conceituadas faculdades do país. Nós seremos muito mais do que isto! Seremos profissionais formados, cheios de energia e prontos para conquistar e mudar o mundo! Para melhor, obviamente”.

As palavras de Raiane foram bonitas e impactantes. Também, pudera. A menina do interior, que estava se formando em Publicidade e Propaganda e
representava no discurso todos os estudantes daquele ano, desde cedo tinha
encontrado na faculdade o seu caminho para o sucesso. Na minha cabeça, o que podia se chamar de pessoa bem resolvida. Na primeira semana de aula, já entrou na empresa júnior da faculdade, onde só os estudantes mais velhos costumam ser aceitos. No fim do primeiro semestre, concorreu à presidência do Centro Acadêmico. Não ganhou, mas ficou muito conhecida e decidiu repetir a dose – desta vez com sucesso – na eleição seguinte. No meio do curso já passou de estagiária a contratada em uma das agências publicitárias mais conceituadas do país e, agora, apenas quatro anos depois de deixar o colegial, estava contratada e recebendo propostas de outros meios, que reconheceram seu imensurável talento.

Raiane era uma inspiração para todos, mesmo para quem só a conhecesse de um ou outro “oi” no corredor, meio que por educação, como era meu caso. De toda forma, era impossível não saber de sua história. A fama não veio à toa. Raiane era sinônimo de dedicação e amor pela profissão escolheu.

Já quanto a mim… bem, acho que é suficiente dizer que, enquanto aqueles chapéus de formatura voavam pelo ar, eu só pensava “o que é que vou fazer da minha vida, amanhã?”.

A rotina de uma estudante de último ano de publicidade não foi nada fácil, mas era segura. Ali, equilibrando o estágio em agência junto a pesquisas de marca, planos de mídia e análise de produto do meu TCC (o revolucionáaaaario salgadinho Jingles – “o alimento que vai fazer uma festa na sua boca”), eu mal tinha tempo de planejar algo muito mais importante: a minha própria história.

Eu tinha cerca de 15 anos quando decidi optar pela carreira de publicitária. Criativa, sempre cheia de ideias mirabolantes, daquelas que faziam as pessoas darem risada fácil, não foi surpresa pra ninguém quando avisei que seguiria o caminho da criação mercadológica. Desde então, eu tinha certeza de que aquele era o meu destino. Todos falavam que eu tinha nascido para aquilo e eu acreditava. O problema foi que esqueceram de avisar desta minha predestinação aos excelentes professores que desenvolveram o teste de vestibular. Na primeira tentativa, foi bomba direto na primeira fase. E olha que eu também me achava uma ótima aluna, mas vai ver me acomodei na tal zona de conforto. Se, sem estudar, eu passava de ano, pra que iria me preocupar?

A resposta é simples: para não ter que perder um ano da vida em cursinho, revendo as mesmas coisas que tinha tido nos últimos três anos e esquecendo de qualquer vida social nos meses da chatérrima revisão pré-vestibular. Mas, ok. Não posso reclamar tanto assim. Depois desse um ano, as aulas do cursinho me ajudaram a passar na prova e os intervalos me ensinaram a utilizar a matemática de um jeito prático: na mesa de sinuca (algo que seria muito útil nos bares da época do trote).

Além disso, o tempo de preparação me ajudou a ter outra visão de mundo. Um período de estudos, mas também de contato com outras pessoas, alguns na mesma faixa etária que eu, outros mais velhos, com outros interesses.

Uma das minhas amigas era policial militar e queria fazer Direito para ganhar mais e sustentar o filho. A outra, aeromoça – digo, comissária de bordo –, decidiu seguir na Administração. Um dos meninos já era biólogo e agora queria cursar Rádio e TV para desenvolver documentários sobre animais. Já Fabíola, minha nova e breve melhor amiga, recém-retornada da França, onde tinha passado um ano, queria era trilhar o caminho das Ciências Sociais. As reflexões dela, tais como justiça social ou igualdade de classes e de gênero, não faziam muito sentido pra mim na época, mas plantaram uma sementinha que iria florescer depois.

Quando entrei na faculdade, perdi o contato com todos esses amigos de cursinho, mas aquela diversidade mudou alguma coisa em mim. Não que eu tivesse desistido da criação publicitária. Muito ao contrário. Ia às aulas feliz e contente, fiz vários amigos, me empenhava em todos os trabalhos. Porém, imaginava como seria estar no mercado de trabalho, vendendo coisas nas quais nem sempre acreditava. E essa certeza de que aquele não era o meu lugar ficou mais forte quando consegui meu primeiro estágio em agência.

Até ali, nunca tinha achado minha ideologia (ah, Cazuza, como você estava certo). Inclusive, confesso que, mesmo tendo passado direto de semestre, até hoje não terminei de ler todos os textos das aulas de sociologia ou ética da propaganda. Porém, se por um lado eu adorava o desafio de criar algo que se revertesse em resultados de vendas, no fundo, me incomodava lembrar que estava incentivando o tal consumismo desenfreado, que só servia para deixar alguém mais rico enquanto outros gastavam dinheiro em coisas de que não precisavam. A minha resistência, quase que inconsciente, àquele modelo-padrão contribuiu para que eu não fosse efetivada no trabalho. Quando deu o final de dezembro, pouco antes do Natal, eu havia encerrado meu contrato de estagiária.

A formatura já era no meio de janeiro. Enquanto Raiane falava, uma voz ressoava dentro da minha cabeça: “e aí, Manuela, vai fazer o que? Até agora você era estudante. A partir de amanhã, se tiver que preencher algum formulário, vai assinalar a opção de desempregada”.

Eu sabia que devia tomar alguma decisão. Mas, se não era publicidade, que caminho seguir? Será que existia alguma forma de conciliar o meu amor pelo dia-a-dia da profissão com algo em sintonia com o que acreditava, ou seja: como realmente fazer, deste, um mundo melhor? Esses pensamentos me cercavam, como siriris em torno da lâmpada assim que começa o verão, e me levavam de volta ao final do Ensino Médio, quando não tinha visto meu nome na lista de aprovados. Então, da mesma forma que no filme Divertidamente – quando uma lembrança boa vira uma tristeza, mas que do nada pode se tornar uma alegria -, o sentimento amargo daquela época me remeteu à imagem de Fabíola e logo se tornou uma verdadeira luz: o que eu precisava era de um novo cursinho. Melhor dizendo, um cursão! Um tempo fora, para ter contato com novas pessoas, novas culturas. Podia ser na área social ou de meio ambiente, que me trouxesse bagagem teórica para que depois eu pudesse juntar com a área que tanto amo – ou não (de repente, poderia mudar tudo). De uma hora para outra, meu peito se encheu de renovada alegria e eu entendi que poderia encontrar um novo ideal. Só tinha que descobrir para onde (e como pagar).

Na saída do auditório fomos – família e amigos – para um restaurante comemorar o diploma, ou pelo menos o canudo, já que o diploma mesmo ainda demoraria uns meses para ficar pronto. Minha mãe mal se continha de tanta alegria. A filha mais velha, a mais responsável, cumpriu os planos e, aos 22 anos, estava formada. Um orgulho! Já a minha cabeça estava a mil. Minha fiel companheira Ansiedade me fazia ter vontade de sair correndo para resolver a vida. Mas, como acredito piamente que celebrar é uma fase importante de todo projeto, deixei o celular bem longe, dentro da bolsa, onde eu não corria o risco de cair na tentação de trocar a companhia real dos meus entes queridos pela do navegador do Google. Mas, foi só chegar a casa que corri para o quarto. Deixei sapato no caminho, larguei a bolsa na cama e, sem compartilhar meus planos com ninguém, me joguei no computador para começar a busca.

O primeiro passo foi definir que seria um país de língua inglesa, assim – se tudo desse errado – pelo menos teria melhorado num segundo idioma. Comecei por Inglaterra, mas o valor da libra me deixou desanimada. Nos Estados Unidos até achei um ou outro curso interessante, mas não era o que eu estava buscando. Irlanda, talvez. Já era tarde, mais de meia-noite, a casa inteira dormindo, quando pensava em qual seria minha próxima opção. Estava empacada, inquieta. O silêncio me ajudou a ouvir o barulho seco do meu celular vibrando dentro da bolsa. Arranquei carteira, nécessaire, chaves. Até achar o aparelho, foi tarde demais. O whatsapp estava com três chamadas perdidas de uma amiga querida, que conheci ainda criança e de quem sempre fui muito próxima, mas que já fazia alguns meses desde que a encontrara pela última vez. A foto de Bianca na tela do celular não poderia ter aparecido em melhor hora. Mal pude conter a alegria.

“É isso! Como pude esquecer???”, me perguntava quase que em voz alta. Ao contrário de mim, Bianca tinha entrado na faculdade diretamente após o colegial e, já formada, largou tudo para estudar e trabalhar em outro país. Era um lugar distante, mas com grande preocupação ambiental, clima parecido com o do Brasil e um dólar com cotação menor que o dos Estados Unidos. Este país era… “Austrália!”, berrei.

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